Cerca de 10 anos atrás tomei uma decisão drástica — e muito difícil. Digitalizei minha vasta coleção de música e presenteei minhas três sobrinhas mais velhas com meus velhos CDs, no Natal. Não fazia mais sentido guardar dezenas de caixinhas de plástico, com seus discos metálicos. Afinal, naquela época eu já escutava música exclusivamente no iTunes do computador ou nos meus adorados iPods.
Por apego emocional, confesso, demorei mais tempo do que deveria para cumprir a profecia de Nicholas Negroponte, então professor do MIT, que previu, em 1995, o fenômeno da digitalização da economia.
No livro “A vida digital” (o título em inglês é ainda mais significativo: “Being Digital”), Negroponte afirmou, com coragem e certeza assustadoras, que a maioria das coisas passaria de átomos (físico) para bits (digital). Avisou ainda que o consumo de informação, restrito a jornais, revistas, livros e mensagens impressas, passaria por uma revolução e que poderíamos nos informar em qualquer tempo e lugar. E que esse movimento seria tão inevitável quanto duradouro. Em bom português: seria um caminho sem volta.
Acertou na mosca.
Não demorou para que o avanço digital se estendesse do campo da informação a outros setores, como o da música, arrastando na enxurrada lojas memoráveis. Mas a desmaterialização não foi o único movimento que contribuiu para que as coisas que consumimos não sejam coisas, como antes. Estamos todos assistindo a um progressivo processo de “servicialização”. Tarefas que cumpríamos com ajuda de produtos adquiridos em lojas, hoje terceirizamos.
Quer exemplos? Vamos lá então.
Segundo o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), havia no Brasil, ano passado, algo como 1,2 milhão de pessoas trabalhando como motoristas de aplicativos e taxistas. Parte dos consumidores trocou o carro novo pelo Uber, 99 e táxis comuns. E não para por aí. Em vez de comprar música, assinamos serviços de streaming. Entre cozinhar em casa e pedir comida, escolhemos o delivery. As lavanderias da Omo em condomínios fazem com que máquinas de lavar sejam menos essenciais. Quando pensamos na substituição de produtos por serviços, a lista é longa.
Vale lembrar ainda que novas gerações demonstram claramente a preferência por usufruir em lugar de possuir. Sem falar no fascínio da garotada pelos chamados não-objetos, como roupas de marca para avatares, tênis virtuais e outras modernidades que não podem ser vendidas em lojas físicas.
Diante dessa realidade, é claro que o mix de lojas dos shoppings precisa se ajustar. Operações de serviços, alimentação e entretenimento seguirão crescendo. Lojas medianas, orientadas apenas para venda de produtos, perderão espaço. E os melhores lojistas acrescentarão serviços às suas ofertas, tanto para atrair clientes quanto para ampliar receitas.
A necessária adequação de mix e a crescente participação do online nas vendas das lojas afetarão a capacidade dos shoppings de arrecadar o mesmo volume de aluguel de antes. Por isso, criar fontes de receita, a partir da geração de fluxo qualificado e identificado de clientes, será ainda mais essencial.
Resumindo: sabe o que acontece com os shoppings, quando as coisas que compramos deixam de ser coisas? Eles assumem de vez uma nova identidade. Abandonam a velha ideia de serem centros de compras e passam a conectar quem quer comprar a quem quer vender. E não apenas dentro de lojas. É isso aí, quem viver, verá.
Luiz Alberto Marinho é sócio-diretor da Gouvêa Malls.
Imagem: Shutterstock
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